Naquela tarde em que tudo ia mudar, eu pisei no campo do Corinthians, a arena lotadinha, a torcida deles cantando… Eu olhava em volta, olhava pra mim dentro do uniforme vermelho do meu time, o Audax, e não parava de me perguntar:

— Caramba, moleque, como foi que você veio parar aqui?

Eu sabia muito bem como tinha ido parar ali, naquela semifinal do Campeonato Paulista de 2016. Só não estava acreditando que era verdade. Nem tinha ideia de que, depois daquele dia, eu conheceria as glórias mais espetaculares e sofreria uma queda avassaladora até a depressão que me tirou toda vontade de viver o meu sonho.

Fazia quatro anos que eu tinha me tornado jogador profissional. E fazia quatro anos que eu não tinha certeza se seria pra vida inteira. Foram tantas idas e vindas antes de estar ali, tantas desilusões, tombos, dispensas… Eu estava retornando pro Audax depois de passagens ruins no Guaratinguetá, na Ponte Preta e no Boa Esporte. Rodei, rodei e não me firmei em lugar nenhum. Um ano antes, decepcionado e sem contrato, cheguei a jogar na várzea por um tempo. Mas aí me chamaram no Audax de novo. Era um recomeço, mais um, pelo time que me formou.

Ainda garoto eu tinha sido reprovado em duas peneiras no Audax. Foi pesado. Fiquei tão mal que decidi nunca mais tentar, porque eu não queria sentir tanta tristeza de novo. E vou te dizer: eu era muito novo, e precisei tirar força não sei de onde pra desistir, porque eu amava o futebol mais do que qualquer outro bagulho.

Tche Tche jogador depressao The Players Tribune
Lucas Seixas/Assist. Assucena Barbosa/The Players’ Tribune

Era jogando bola que eu me sentia à vontade, livre e feliz. Nem ligava pros perrengues de começo de carreira. Na hora de ir pro treino, por exemplo, eu precisava escolher o que fazer com as moedinhas: Tomo lanche ou pago a passagem do ônibus? 

Não dava pra fazer as duas coisas.

Então, ou eu pedia pro cobrador me deixar passar por baixo da catraca, ou treinava de barriga vazia. Mas, assim que eu chegava, via o campo de treino e ia pro vestiário calçar as chuteiras, tudo de ruim desaparecia e eu ficava achando que todos os dias pudessem ser de sol.

Jogar bola me aquecia, me fazia ser parte de alguma coisa, eu via que existia um lugar no mundo pra mim. Mesmo tendo sido meio grosso quando criança. Depois, na base do esforço e da teimosia, da repetição, eu evoluí como jogador. Mas na infância, quando comecei a jogar, eu era horroroso… Séloko hahaha!!

O craque lá em casa sempre foi meu pai, um meia-atacante ambidestro que arrebentava na várzea. Ele me levava pros jogos dele, me punha sentado no banco dos reservas e eu não assistia à partida, eu assistia o meu pai. Não tirava os olhos dele. Ainda hoje eu sinto o cheiro do suor quando ele vinha me abraçar no final da partida e perguntar se eu tinha gostado. Pô, mano, eu tinha adorado! O que podia ser mais daora pra um menino de seis anos do que ver o pai jogando bola num domingo de manhã?

Eu lembro desses momentos e penso que o futebol, pra mim, sempre vai ter mais a ver com amor do que com conquistas, competição, fama ou dinheiro. Eu simplesmente amo o futebol porque, jogando, eu volto a ser um menino que teve a sorte de passar domingos inesquecíveis com o pai. Parece pouca coisa, mas na quebrada de onde eu vim é um privilégio, tio… Lá tem muita criança sem pai, sem pai e mãe, ou com pai e mãe que estão no corre o dia todo e mal podem ficar com os filhos, tá ligado? Mas meu pai sempre esteve comigo em todos os momentos importantes da minha vida.

Foi ele inclusive que, sem que eu soubesse, me inscreveu em mais uma peneira no Audax quando eu já tinha desistido de tudo:

“Vai, tenta de novo, quem sabe? É a sua alegria. Se a gente não arrisca ser feliz, sobra o quê?”, o meu pai me falou.

Então eu fui fazer a peneira pela terceira vez. Eram testes que duravam semanas, de tanta gente que tinha. Várias e várias etapas, afunilando. No total, uns 20 mil garotos do país todo. No final só ficavam quatro ou cinco. E dessa vez eu me tornei um dos quatro ou cinco.

Jogando futebol eu volto a ser um menino que teve a sorte de passar domingos inesquecíveis com o pai.

– Tchê Tchê

Foi assim que eu fui parar ali, na arena do Corinthians, naquela tarde de 2016. No aquecimento, quando corri pra buscar uma bola na lateral, eu vi umas caras conhecidas na arquibancada. Era uma galera da minha quebrada, os amigos, o pessoal de Guaianases, onde eu nasci e cresci e que fica a três estações de trem do estádio.

Caramba, moleque, teus parças aí te olhando. Como vai ser isso hoje?, eu pensei.

Foi que, aos 25 do segundo tempo, eu recebo uma bola na frente da área do Corinthians. Tem espaço pra avançar. Eu ajeito a bola e o corpo pra bater de esquerda. Assim como meu pai, eu sempre confiei muito na canhota. Vou bater, não, peraí, ainda não tá do jeitinho que eu quero. Então eu empurro ela mais um pouco pra frente, um toquinho de nada, agora sim. “Vai, meu amor, voa”. A bola flutua e tudo agora é silêncio. Ela faz uma curva saindo e volta pro gol no finalzinho da trajetória. O Cássio salta, não alcança. No ângulo. De onde eu estava deu pra ouvir o som da rede.

Eu lembro de cada detalhe com muita nitidez, porque esse lance mudou a minha vida e da minha família. Depois de marcar, eu saí correndo, queria gritar, queria falar um monte de coisa, mas as palavras não vinham. Saiu só: “Meu Deus do céu! Meu Deus do céu!”. O jogo terminou 2 a 2. Nos pênaltis eu marquei de novo, a gente se classificou pra final e eu fui escolhido o melhor em campo.

Meu Deus do céu!

Um ano antes, eu tinha estado ali numa situação bem diferente. Tinha sido emprestado pra Ponte Preta e estava encostado. Nem inscrito pro Campeonato Paulista de 2015 eu fui. Voltei pra Guaianases sem saber o que fazer da vida. Aí ia ter um Corinthians x Ponte e eu comprei ingresso pra assistir. Fomos eu, meu pai, minha mãe, minha irmã e a minha esposa. A gente ficou no meio da torcida da Ponte, ninguém sabia quem eu era. Quase terminando a partida, eu falei pro meu pessoal:

— Ano que vem vocês vão me ver jogar aqui.

Louco isso, né? Eles me viram mesmo, marcando aquele golaço, sendo eleito o melhor em campo e aí voltamos pra casa de trem, no meio da galera. Um único torcedor do Corinthians me reconheceu e falou:

— Pô, mano, logo contra o nosso Coringão?

— Tenho que defender o meu, né?, eu respondi, dando risada.

Poucas vezes eu tinha me sentido tão feliz. Parecia um sonho. Tudo o que eu precisava estava dentro daquele vagão de trem: meus familiares e a alegria que o futebol me dava. Mas nem era tudo ainda…

No dia seguinte, com o dinheiro do bicho eu fui na Galeria do Rock, no centro da cidade, comprar um tênis pra minha esposa. Ela é tudo pra mim, sempre foi. Nunca saiu do meu lado. No começo de namoro, ela ganhava mais e pagava todos os lanches, as pizzas, enquanto eu tentava ser jogador profissional. Quando completei um ano do primeiro contrato no Audax, a gente foi comemorar no McDonald’s. Era o que dava pra comprar com meu dinheiro e foi inesquecível. A gente riu à beça nesse dia, fazendo planos de viagens, filhos e tal.

Mas aí, depois do gol contra o Corinthians, eu tô lá na Galeria do Rock procurando um tênis bacana pra ela e vejo meu irmão mexendo no celular sem parar. Ele vira pra mim, com o olhão arregalado, assim:

— Vão te ligar aqui e você atende.

— Quem é?

— Atende, moleque. Só atende.

O bagulho toca, eu atendo.

— Fala, guri, aqui é o Alexi Stival.

— Quem?! Sei quem é não, irmão.

— É o Cuca, treinador.

— Ih, professor, foi mal. Desculpa. Tudo bem com o senhor?

Meu coração querendo sair pela boca. Tum-tum-tum. Ele continua:

— Como é que tá a tua situação no Audax? Será que você não pode vir ajudar a gente aqui no Palmeiras?

Meu Deus do céu!

Eu tinha renovado com o Audax por 30 dias só pra poder terminar o Paulista. Não tinha ideia do que faria depois. Desliguei o telefone, devolvi pro meu irmão e saí andando. Ele me alcançou, a gente se abraçou e chorou ali no meio da rua.

Choro de novo só de lembrar, sério… Foi apenas um ano. Um aninho só. Eu saí daquela situação de jogador encostado, que não tinha mais certeza se continuaria no futebol, pra me tornar campeão brasileiro pelo Palmeiras, ganhando Bola de Prata e tudo.

Sempre me pergunto como a vida da gente pode dar essas voltas. Não sei responder. Mas sei de uma coisa: a gente vai dormir, planeja umas paradas pro dia seguinte, mas não tem controle sobre nada, essa que é a verdade, parça. O amanhã é sempre um desconhecido. Pode ser melhor, pode ser pior. É bom que seja assim, incerto, porque quando a gente cai — na vida real todo mundo uma hora cai — essa é uma corda pra segurar e subir de volta.

E vou te contar: eu caí feio.

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Lucas Seixas/The Players’ Tribune

Foi na época em que joguei no São Paulo. Começou com uma dor de estômago. Fiz uma endoscopia e os médicos viram que estava tudo vermelho, bem mal. Uma gastrite nervosa, nervosíssima. Na sequência foi chegando uma tristeza esquisita, meio fora de hora e de lugar. Eu me sentia pra baixo, mas, como não tinha motivo nenhum praquilo, deixava pra lá achando que logo ia melhorar. Não melhorou. A tristeza me engoliu.

Ah, já até sei o que você tá pensando: “Hmm, o problema com o treinador mexeu com a cabeça dele”. Nada a ver. Isso foi bem antes daquele episódio.

No começo da minha passagem pelo São Paulo, eu levantava de manhã pra ir treinar, mas não tinha vontade. Nem de treinar, nem de jogar, tá ligado? Fui ficando sem ânimo pra fazer as coisas, não queria sair de casa. O sofá e o colchão da cama me sugavam como se fossem areia movediça. Eu só afundava e chorava. Chorava o tempo todo.

Mas a minha vida tava toda certinha, eu tinha tudo que precisava. De onde vinha aquele sofrimento? Meu Deus do céu!

Uma hora eu comecei a sentir saudade da pessoa que eu era de verdade. Aquele Danilo não era eu, era menos que eu. Meus pais passaram a ir diariamente ficar comigo na minha casa. Eles deixavam de fazer as coisas deles pra estar lá. Minha esposa também, o tempo todo do meu lado tentando me ajudar. Mas eu não conseguia mais sentir o amor deles. Nada do que eles falavam parecia ter significado pra mim.

A tristeza tinha se apoderado e esmagado as minhas outras emoções. Parecia uma ferrugem corroendo um pedaço de ferro. Não existia mais sol me aquecendo. Só existia noite e chuva. Uma chuvinha incessante que me enfraquecia todos os dias, me desfazia aos poucos. Cada minuto do dia me feria. Até tomar banho exigia um esforço descomunal.

Foi difícil estar no meio das pessoas. Eu achava que me olhavam, sabiam que eu sofria de depressão.

– Tchê Tchê

Não contei pra ninguém no clube. Tinha vergonha.

Como eu podia não ter vontade de fazer a coisa que eu mais amo na vida?

O que os torcedores do São Paulo iam pensar de mim?

Será que eu conseguiria demonstrar pra eles uma coisa que eu não conseguia mais sentir, que era o meu amor pelo futebol?

Eu vivi cinco meses nessa amargura, nesses extremos opostos: eu era um ser humano triste se obrigando a parecer um profissional feliz e sendo julgado por milhões de pessoas a cada três dias. E não é que eu estivesse passando a noite na farra, bebendo e tal. Não era isso. Eu estava deprimido. E me sentia culpado por estar.

Tentava buscar forças na lembrança dos domingos de manhã na várzea com meu pai pra me arrastar todos os dias pro trabalho. Muitas vezes, mesmo nesse estado psicológico miserável, eu conseguia jogar bem, ajudava o time a vencer. Não queria que ninguém percebesse a minha situação. Ficava com o pessoal no vestiário, na resenha e tudo mais, fingindo estar tudo normal. Só eu tinha noção do tamanho do vazio na minha alma. Quando terminava a partida, eu voltava pra casa chorando, sozinho, dirigindo meu carro, tentando entender o que estava acontecendo.

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Lucas Seixas/The Players’ Tribune

Hoje, quando me pergunto o que desencadeou tudo isso, eu penso que fui eu mesmo. Antes de chegar no São Paulo, eu tinha passado um período complicado no Dynamo Kiev. Comecei bem, mas me machuquei e acabei tendo poucas oportunidades. Sem contar que a vida na Ucrânia não é como no Brasil. Lá faz muito frio, a gente estava longe da família e dos amigos, praticamente sem convívio social.

Aí o São Paulo me trouxe de volta, e eu passei a me cobrar demais. Me obrigava a ser um jogador que correspondesse às expectativas que eu acreditava que o clube tinha.

ELES APOSTARAM ALTO EM MIM, NÃO POSSO DECEPCIONÁ-LOS, eu me pressionava internamente.

Acho que isso foi sobrecarregando a minha mente e o meu espírito. E nada na vida precisa ser assim. O negócio é viver um dia de cada vez, fazendo o melhor possível pra acertar e sabendo que é impossível acertar o tempo todo. De boa. No dia que você errar, precisa se perdoar e ir dormir pensando: Beleza, hoje não foi bom, mas amanhã eu vou me esforçar ao máximo para tentar fazer melhor.

Foi assim que, com a ajuda da minha esposa, do meu filho e dos meus pais, eu agarrei a corda e aos poucos fui voltando do abismo.

Agora no Botafogo, sou de novo a melhor versão de mim.

– Tchê Tchê

Depois de cinco meses só saindo de casa pra treinar e jogar, um dia fui ao cinema com a minha esposa. Foi difícil e estranho estar no meio das pessoas. Eu achava que me olhavam, sabiam que eu sofria de depressão e pensavam “mas que frescura”. Tem muita gente que acha que depressão é frescura. Não é. A galera olha pra gente, jogador profissional, e só enxerga o carro, a casa, o salário, as taças.

“O cara tem tudo, pô. Tá triste por quê?”

Porque a gente é ser humano, por isso. Hoje eu posso responder.

Nesse dia do cinema, a gente saiu da sala e eu dei um longo abraço na minha esposa. Falei pra ela:

— Tô melhorando, né? Tô voltando a ser feliz, não tô?

E aí eu fui voltando a ser eu mesmo. A ser o Danilo, mais coração do que razão, que a quebrada conhece.

Só depois que o pior passou eu procurei a psicóloga do São Paulo. Ela disse que eu tinha sido muito forte de ter conseguido atravessar uma depressão sem ajuda especializada. Mas não foi porque eu quis, foi porque eu não consegui gritar socorro.

Finalmente eu melhorei. Me firmei como titular no São Paulo, fui pro Atlético, ganhei cinco títulos em Minas e nunca mais me senti daquele jeito.

Tche Tche Players Tribune filho
Lucas Seixas/Assist. Assucena Barbosa/The Players’ Tribune

Hoje eu estou bem. Muito bem, graças a Deus. Agora no Botafogo, sou de novo a melhor versão de mim. Sei disso porque cheguei com sede de aprender, de me tornar um jogador mais completo, de continuar sendo o cara que carrega o piano pros companheiros tocarem. O guerreirinho de sempre, que, se precisar, vai correr pelos outros.

É assim que eu sou feliz no futebol.

De vez em quando sai um gol de fora da área, mas o que eu faço de melhor é carregar o piano. Então eu vou, chego todo dia no clube, trabalho duro, dou o melhor de mim nos treinos e nos jogos e volto de cabeça erguida pra casa, pra minha família, que é o meu porto seguro.

O corre é louco, parça. Posso até não agradar todo mundo. Mas amanhã é outro dia. Eu vou simplesmente dormir e tentar de novo quando acordar.

Fonte: Players Tribune